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Arquivo pessoal

Maria Portelo de Lima conviveu com a família durante 61 anos, mas eles prefeririam esquecer as últimas 30 horas. A sobrinha Rosa Alves saiu de casa no domingo à tarde para registrar o boletim de ocorrência de seu falecimento domiciliar por suspeita de covid-19 em uma delegacia de Manaus. Ela também acionou o SOS Funeral para levar o corpo. Porém, a tia só foi retirada da cama onde morreu na segunda-feira à noite.

Nesse intervalo, o que a família fez foi chorar, rezar e esperar até cansar. A única medida prática possível foi colocar algodão nas narinas de Maria e um lençol branco sobre seu corpo. A tristeza se misturava à revolta de quem se diz enrolado pelo serviço funerário de Manaus. O UOL procurou a prefeitura de Manaus, que não enviou explicações sobre a demora para a retirada o corpo.
Maria morava em uma casa na localidade de São João, que fica na rodovia federal que leva a Manaus. Ela não teve uma vida de luxos e terminou seus dias dividindo uma casa de dois cômodos — quarto e cozinha — com seis pessoas da família. Quando precisava ir ao banheiro, Maria caminhava até a “casinha” que ficava no terreno da residência.
Ela estava com falta de ar, tosse seca, diarreia e dores no corpo havia uma semana. Os parentes desconfiavam de covid-19, mas o Samu nunca tinha ambulância para buscar Maria. A família não tinha dinheiro para um táxi, e logo depois do meio-dia de domingo começou a agonia.
A senhora desmaiou e todos se apavoraram. Colocaram um pano embebido em álcool embaixo do nariz de Maria. Deu certo, mas, algum tempo depois, Maria teve um mal-estar e não voltou mais.

Promessas e enrolação do serviço funerário

No domingo à tarde, Rosa saiu da delegacia com a instrução de ligar para o SOS Funeral para que buscassem o corpo, e ouviu da atendente a promessa de que isso aconteceria até a meia-noite.
Às 3 horas da manhã, o corpo ainda não havia sido retirado e os familiares foram para o lado de fora de casa porque o cadáver começava a cheirar mal. A segunda-feira amanheceu e Rosa continuou a aguardar. Digitou de novo o número do SOS Funeral e ouviu outra promessa: até o meio-dia o caso estaria resolvido. Ela se decepcionou mais uma vez.
Desde a noite anterior, ninguém entrava em casa por causa do cheiro e um vizinho foi procurado. Ele falou que conseguia fazer um caixão de madeira e poderiam enterrar Maria em algum lugar na beira da estrada que liga Manaus a Roraima.
A sobrinha ainda teve outra ideia, a de usar uma geladeira velha esquecida nos fundos do terreno para colocar o corpo e encher de gelo para conservar a tia. A esta altura, ninguém mais atendia seus telefonemas no SOS Funeral. Uma cunhada resolveu tentar a sorte e conseguiu falar com um atendente. Até o final da tarde, e nenhum minuto depois disso, o drama teria fim.
As palavras se revelaram vazias e Rosa se cansou. Procurou a imprensa e a história foi citada no Jornal Nacional. Bastou William Bonner e Renata Vasconcellos mencionarem o caso que, em poucos minutos, um carro do SOS Funeral apareceu.
Era 21 horas de segunda-feira, exatas 30 horas desde o falecimento. O motorista estava sem jeito. Nem era culpa dele, diz Rosa, mas o drama da família envergonhava o rapaz.
“Quando ele chegou para remover o corpo, eu disse: ‘Poxa moço! A gente foi tão humilhado. Se põe no nosso lugar… E se fosse alguém da família de vocês?’ Ele entendeu nossa revolta, admitiu que agiram errado com a gente”.

Descaso público desde o começo

Maria começou a sentir sintomas da covid-19 na terça-feira da semana passada. A família ligou várias vezes para o Samu e nunca havia ambulância para levar a paciente ao hospital. No domingo, ela não resistiu. Quando o médico do Samu apareceu, não para atender, mas para reconhecer o óbito, ouviu o relato da família e concluiu que a causa deveria ser a covid-19.
A família se arrumou para o enterro na terça de manhã. Mas a agilidade do SOS Funeral não se alterou. Rosa fez o caminho do cemitério até a funerária várias vezes, e já estava quase resignada a esperar até quarta-feira pelo sepultamento.
Às 15h35 de ontem, abriram o caminhão frigorífico que armazenava corpos e tiraram o caixão. Uma hora depois, Maria encontrou sua última morada.
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