Ministérios da Justiça e dos Direitos Humanos pretendem criar espaço em memória daqueles que morreram ou desapareceram na luta contra o arbítrio. Deve estar erguido no ano que vem, quando o golpe de 1964 completa 60 anos
Num cenário ainda embaralhado na relação com os militares, o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva inseriu na sua agenda um tema que nunca foi bem digerido pelas Forças Armadas. Nos 60 anos do golpe militar, a serem completados em março de 2024, o governo irá inaugurar um espaço de lembrança daquele período, expondo as violações perpetradas pelos militares da época, as perseguições a opositores ao regime, as mortes, os desaparecimentos, os atos de exceção, censura e exílio.
Somente seis décadas depois, o Brasil irá ganhar o seu Museu da Memória e da Verdade, uma parceria dos ministérios da Justiça com o dos Direitos Humanos e da Cidadania. O governo chega atrasado nessa dívida com o país. Outras nações que passaram também por ditaduras no continente já viraram esta página e expõem tais mazelas em museus e memoriais, casos de Argentina e Chile, que até julgaram e condenaram seus militares ditatoriais.
Ainda incipiente, o projeto começou a ganhar corpo agora. O Correio ouviu ex-presos políticos, parentes de desaparecidos e integrantes de comissões da Anistia e dos Mortos e Desaparecidos. E perguntou o que eles acham que o museu deve exibir, diante de tanta história de violações e da luta pela volta da democracia em 25 anos de uma ditadura.
O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, reconhece haver essa dívida com o país. Ele anunciou a um pequeno grupo de brasileiros, no Chile, há duas semanas, a construção do museu brasileiro.
“O exercício da memória é um exercício de coerência com a luta democrática e popular. É um exercício de coerência com a luta contra o fascismo. Nós devemos ao Brasil e vamos pagar essa dívida. Um museu da memória, da verdade e dos direitos humanos no nosso país”, afirmou.
Dívida
O médico e professor Gilney Viana atuou na luta armada contra a ditadura. Ficou preso 13 anos. Vítima direta do regime dos generais, ele acha “louvável” a iniciativa do governo em criar esse museu. Mas a considera “um pouco tardia”. Ele lembra que, em governos petistas passados, se tentou criar um museu da anistia, que não foi concluído.
“O governo segue em débito com a gente. A primeira tentativa fracassou. Louvo essa ideia do museu e esperamos que saia de fato. E que não fique restrito aos anistiados políticos e às vítimas conhecidas da ditadura. O número de atingidos é bem maior. O número de mortos e desaparecidos não são apenas os 434 oficialmente reconhecidos pela Comissão da Verdade. Na minha conta, chegam a 1.650. Nesse museu, será preciso incluir os excluídos, como os indígenas e os camponeses perseguidos pelos militares”, cobrou Gilney.
A construção do museu estará sob a incumbência do ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) e de Nilmário Miranda, assessor Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade do ministério — também ex-perseguido político e ex-deputado federal pelo PT.
A professora Vera Paiva, da USP, é filha do ex-deputado Rubens Paiva, perseguido e morto pela ditadura e cujo corpo jamais foi localizado. Seu pai ganhou um busto num local central na Câmara dos Deputados. Durante o ato, em 2014, o então deputado Jair Bolsonaro passou pelo local e fez provocações.
Marielle, Bruno e Dom
Vera integrou a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos durante anos. Ela comentou sobre o museu. “Como familiar de alguém perseguido e morto pela ditadura, acho que esse museu precisa dedicar uma seção com os nomes dos mortos e desaparecidos. Mas imprescindível também que constem as identidades dos inúmeros indígenas e moradores do campo que não estão listados hoje. E entendo que é preciso expandir mais ainda e inserir pessoas que foram alvos de práticas daquele passado, casos do pedreiro Amarildo de Souza (desaparecido e morto pela PM em 2013, no Rio), de Marielle Franco e de Bruno Araújo e Dom Phillips, mortos recentemente na Amazônia, com requintes de tortura que lembram a ditadura”, disse Vera.
Atual presidente da Comissão de Anistia, a advogada e professora Eneá de Stutz e Almeida, que coordena um trabalho de justiça e transição na UnB, celebra a iniciativa. Lembra que, no Brasil, há poucos lugares de memória desse período “tão violento e tão sombrio da nossa história”. Para Eneá, é preciso ir além das comissões de estados, que existem e que já existiram antes.
“É absolutamente fundamental um museu ou um memorial de memória e da verdade, que exista essa referência para contar a história desses heróis e heroínas, que foram perseguidos pelo Estado e, ainda assim, seguiram lutando por democracia. É uma história que precisa ser contada e recontada sempre. Esses, sim, são verdadeiros patriotas”, afirma Eneá.
Ex-presidente da Comissão de Mortos e Desaparecidos, extinta no último dia do governo Bolsonaro, a procuradora Eugênia Gonzaga, como Gilney, lamenta a não conclusão do memorial da anistia. Ela entende que um museu, ou memorial, tem que ir além de homenagear as vítimas do regime e considerar, também, as circunstâncias que levaram a um golpe há 60 anos.
“Passamos por tanta coisa recentemente. Acho que precisa ser ressaltado o que levou ao golpe de 1964, o que foi, como se deu. Não ficar, o museu, restrito às vítimas, como os militares quiseram. Eles restringiram até mesmo esses números de mortos. Claro que essas vítimas têm que ser homenageadas, mas é preciso sair, também, dessa narrativa e trazer uma visão do processo que levou à ditadura e suas agruras”, salienta Eugênia.
Diva Santana é uma histórica militante dos direitos humanos e precursora em ações que cobram do Estado esclarecimentos sobre as vítimas da ditadura, como sua irmã Dinaelza Santana Coqueira, que atuou no PCdoB e desapareceu na Guerrilha do Araguaia. Diva participou de várias expedições àquela região de busca dos restos mortais desses guerrilheiros.
O museu, para ela, é de grande importância para preservação da memória e cobre uma lacuna de informações sobre o que foi a ditadura e suas consequências. “Os brasileiros desconhecem esse recorte como história de um povo guerreiro, que luta desde a colonização defendendo a vida e seus direitos. Ocorre que os colonizadores, juntamente com a Igreja Católica, promoveram politica e socialmente esse esquecimento, haja vista o período da escravidão e de todos os levantes populares. Os livros de história apenas pontuam algumas dessas lutas. Outros países onde as civilizações se organizaram de formas diferentes, constroem e preservam a história de luta de seus povos com memoriais e museus”, entende Diva.
Fonte: Correio Braziliense
Foto: Divulgação