TCE
Maioria dos corpos encontrados em
caminhão no Reino Unido pertence a vietnamitas e não chineses
‘Sinto muito, mamãe. Não tive
sucesso na viagem. Estou morrendo porque não consigo respirar’, diz mensagem de
uma das supostas vítimas
Rafa de Miguel e Macarena Vidal,
do El País
Nguyen Dinh Luong (à esquerda) e
Pham Thi Tra My, cujos parentes temem que estejam entre as vítimas Foto:
Reprodução
LONDRES e PEQUIM — A situação
começou a se esclarecer nas últimas horas e está ficando claro que as primeiras
conclusões sobre o crime que chocou os britânicos foram precipitadas.
Informações fornecidas por muitos moradores da região central do Vietnã sugerem
que a maioria dos 39 corpos encontrados dentro de um caminhão na madrugada de
quarta-feira era dessa nacionalidade, e não chinesa, como se disse.
Mais três pessoas foram presas na
sexta-feira (dois homens e uma mulher, todos norte-irlandeses), e uma quarta
(um homem de 23 anos) no sábado, no porto de Dublin. O motorista do caminhão,
Mo Robinson, continua sob prisão preventiva e foi acusado neste sábado de
homicídio culposo, tráfico de pessoas, colaboração com a imigração ilegal e
lavagem de dinheiro. Os esforços dos investigadores se concentram em encontrar
a máfia do tráfico de imigrantes que está por trás de tudo o que aconteceu.
Neste sábado, o governo do Vietnã
deu instruções a sua embaixada em Londres para que apoie a polícia britânica na
identificação das vítimas, como afirmou o Ministério das Relações Exteriores em
um comunicado. A polícia do Reino Unido já anunciou que seria uma das
investigações mais complexas e demoradas que o departamento já enfrentou. E recebeu
duras críticas por ter anunciado precipitadamente que os 39 mortos eram de
nacionalidade chinesa e, assim, suscitar falsas esperanças nas famílias
vietnamitas afetadas.
O alerta foi dado quando foi
divulgada a mensagem de texto que uma mulher de 26 anos, Pham Thi Tra My,
enviou à mãe por meio do celular na terça-feira à noite, pouco antes de o
caminhão chegar ao polígono industrial em que foi encontrado depois da
meia-noite. Sua família explicou que ela pagou 35.000 euros (cerca de 155.000
reais) para viajar para o Reino Unido através da China.
Começaram a suspeitar que pudesse
ser um dos corpos encontrados no caminhão em Grays, no condado de Essex, quando
leram a mensagem. “Sinto muito, mamãe. Não tive sucesso na minha viagem. Te amo
muito. Estou morrendo porque não consigo respirar”, escreveu a mulher. Não
houve mais mensagens dela desde então.
Ao menos seis outras famílias na
mesma região forneceram informações e expressaram preocupação com o paradeiro
de seus parentes. Os familiares de Nguyen Dinh Luong, de 20 anos,
compartilharam no Facebook uma mensagem em que temem que o jovem tenha morrido
nesse caminhão.
A família de Bui Thi Nhung, de 19
anos, originária da província de Nghe An, uma das mais pobres do Vietnã, também
aguarda angustiada notícias sobre o paradeiro da filha. Em sua página no
Facebook, ela tinha respondido na segunda-feira ao comentário de uma amiga
sobre uma de suas fotos que quase tinha terminado a viagem. Em 18 de outubro
havia postado algumas imagens dela em Bruxelas.
O padre católico Anthony Dang Huu
Nam, da aldeia de Yen Thahn, em Nghe An, disse à agência de notícias Reuters
que várias famílias entraram em contato com ele para informá-lo do
desaparecimento de seus entes queridos. Alguns vêm dessa província, ao sul de
Hanói; outros, da vizinha Ha Tin.
As investigações determinaram que
Mo Robinson, um norte-irlandês de 25 anos, dirigiu o cavalo-mecânico de sua
residência, na localidade de Portadown, até Dublin. Da capital irlandesa, pegou
uma balsa até o porto galês de Holyhead, aonde chegou no sábado. Depois dirigiu
até o pequeno porto de Purfleet, no rio Tâmisa. Lá, depois da meia-noite de
terça-feira, pegou um contêiner, recém-chegado do porto belga de Zeebrugge, e o
rebocou até Grays, a sete quilômetros de distância. Logo depois os serviços de
emergência do Reino Unido alertaram a polícia de que haviam encontrado 39
corpos e Robinson foi preso. As autoridades não esclareceram quem deu o aviso.
Uma amostra da complexidade do
caso é que a número dois do departamento, a comissária Pippa Mils, implorou
pela ajuda de todos aqueles que tenham informações úteis e prometeu que não
haverá represálias para aqueles que ajudarem. “Falem conosco sem medo.
Garanto-lhes que trataremos suas informações com a mais estrita
confidencialidade e que não serão acusados formalmente de nenhum crime”,
afirmou.
Tráfico ilegal
Nos últimos anos foi detectada a
atividade de quadrilhas criminosas que traficaram milhares de imigrantes
vietnamitas irregulares. O Vietnã, com 97 milhões de habitantes, registrou um
espetacular crescimento econômico nos últimos 30 anos, desde que lançou uma
série de reformas para abrir seu mercado. Em 2018, seu crescimento foi de 7,1%.
Entre 2002 e aquele ano, segundo o Banco Mundial, o nível de pobreza caiu de
70% da população para 6%. No entanto, esse crescimento foi muito desigual e nas
áreas rurais, especialmente nas mais remotas, ainda existem zonas de extrema
pobreza. Muitos jovens e crianças, especialmente mulheres, acabam sendo vítimas
do tráfico de pessoas para a China — as mulheres jovens são obrigadas a se
casar ou acabam em bordéis, na maioria dos casos — ou à Europa. O Reino Unido é
um dos destinos preferidos.
“Muitas vítimas vietnamitas do
tráfico em trânsito por países europeus experimentam viagens longas e penosas.
As mulheres são abusadas e exploradas mediante trabalho forçado ou exploração
sexual, muitas vezes nas mãos de redes mafiosas e traficantes europeus. Em
muitos casos, as vítimas atraem a atenção das autoridades dos países europeus,
mas estas não as identificam como vítimas do tráfico; elas as vêm como
imigrantes ilegais ou criminosos”, denuncia um relatório conjunto das ONGs
Anti-Slavery International, Every Child Protected Against Trafficking UK e
Pacific Links Foundation.
“O horror do tráfico de pessoas
nos atingiu novamente com a trágica morte dessas 39 pessoas. E sabemos que a
realidade é infelizmente pior do que tudo isto”, resumiu Tom Tugendhat,
presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Comuns do Reino
Unido.