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Patologias que afetam sistema imunológico deixam esportistas em alerta

 Foram quatro anos duros para Verônica
Hipólito. Após a Paralimpíada Rio 2016, a velocista passou por duas cirurgias
para a retirada de tumores da cabeça. Não que algo assim fosse novidade à
atleta. Mais jovem, ela já havia feito procedimento similar no cérebro e no
intestino grosso, além de superado um acidente vascular cerebral (AVC) que
atingiu o lado direito do corpo. As últimas cirurgias, porém, exigiram
mais que o esperado e retardaram o retorno da atleta às pistas. Quando a
rotina de treinos e competições parecia voltar ao normal, a pandemia do novo
coronavírus (covid-19) ligou o sinal amarelo – em alguns lugares, o
vermelho – no mundo.
 No caso de Verônica, porém, a atenção tem de
ser redobrada. Por conta das intervenções pelas quais passou em seus 23 anos de
vida, a jovem faz parte do chamado grupo de risco – aquele mais suscetível ao vírus
e que inclui, por exemplo, pessoas acima de 60 anos, diabéticas e com doenças
cardiovasculares. 
 “Poderia tentar treinar na rua, mas, não
vou me arriscar por dois motivos: saúde pública e minha própria saúde. Mesmo
que tivesse uma academia aberta ao lado de casa”, afirma a velocista da
classe T38 (atletas com paralisia cerebral).
 “Hoje, estou bem dessas cirurgias, mas, a
imunidade ficou muito baixa. Não produzo quase nenhum hormônio e tenho que
fazer reposição. Entre eles, o cortisol; tomo corticoide. Só que também tem uma
coisa chamada doença de Addison e, às vezes, o corpo não
absorve esse corticoide”, explica a corredora, medalhista de prata (100
metros) e bronze (400 metros) na Paralimpíada Rio 2016. 
 Como vários atletas na pandemia, Verônica teve
que adequar os treinos para realizá-los em casa. “Comprei alguns materiais
que conseguiria adaptar, como colete com peso e escadinha. Fiz uma barreira com
duas cadeiras e um pedaço de papelão. Minha pista de corrida virou o corredor
de casa, que deve ter uns 15, 20 metros, mas, até para treinar
largadaé difícil. Se fizer com muita força, a sério, não consigo desacelerar e
acabo me machucando”. Mas, estar no grupo de risco requer detalhes, mesmo
pequenos, antes do exercício começar. “Ninguém pode mais ficar de tênis em
casa, só de chinelo”, resume.
 Atleta da bocha paralímpica, Evelyn Oliveira
também precisou adaptar o dia a dia à quarentena – que, assim como no caso de
Verônica, é mais que necessária.
  “Como tenho atrofia muscular espinhal,
meu sistema neuromuscular é muito comprometido e isso afeta a parte
respiratória”, detalha a esportista. .
 Por um lado, Evelyn tem um espaço de treino em
casa, construído após a Paralimpíada Rio 2016, em que conquistou o ouro
nas duplas mistas. “Os Jogos foram determinantes porque surgiu o incentivo
financeiro, pude participar de mais eventos internacionais, o patrocínio
melhorou e me possibilitou reformar o salão para eu poder treinar. A ideia era:
como eu sempre tive dificuldade para me deslocar aos locais de treino, construí
um espaço para otimizar o tempo”, explica.
 Em contrapartida, por conta da deficiência
motora severa característica da categoria pela qual compete (BC-3), ela
necessita de um auxiliar para arremessar as bolas, o chamado calheiro – com
quem acaba não podendo trabalhar, já que o parceiro mora em outra cidade e
também está isolado. “No caso, a família, a mãe, e até algum vizinho pode
ajudar. Ainda não treinei lá (desde o começo da quarentena), mas, tenho
aproveitado para assistir jogos e analisá-los. O que a gente mais usa na bocha
é o cérebro, então busco tê-lo sempre em atividade. Acaba que não fico
totalmente parada”, conta.
 Outro que se esforça – tomando os devidos
cuidados – para não ficar parado é o também jogador de bocha Lucas Araújo.
Atleta da classe BC-2 (paralisia cerebral), ele se divide com outra modalidade:
representa o Rio de
Janeiro
 Power Soccer, time
de futebol em cadeira de rodas. “Os treinos estão sendo em casa, na
varanda ou na sala. A seleção pede para fazermos exercícios respiratórios, para
fortalecer e aumentar imunidade”, relata,  escrevendo cuidados que
não só ele, mas a família, precisaram reforçar. “Lavar as mãos,
esterilizar as coisas quando chegam da rua…”.

 Orientação médica

 Segundo o médico do Comitê Paralímpico
Brasileiro (CPB), Hesojy Gley, a estimativa é que 10 a 20% dos integrantes de
uma delegação paralímpica integrem esse grupo de risco. Significa, por exemplo,
que nos Jogos do Rio de
Janeiro
 essa população pode ter variado de 450 a
900 atletas. Ele destaca ainda que os perfis que se enquadram nesse
universo são variados.
 “Pessoas com lesão medular alta,
principalmente tetraplegia, têm uma perda importante na capacidade voluntária
de respiração, involuntária também. Você tem, também, aqueles com lesões
neurológicas progressivas, com medicamentos que precisam ser usados para
controlar essa evolução. Há os portadores de sequelas de doenças articulares
por conta de artrites, que necessitam usar imunossupressores (fármacos que
reduzem reações imunológicas específicas do organismo). E tem recém-operados,
como a Verônica, que passou por uma neurocirurgia e precisa de medicamentos de
uso crônico, além de ser acompanhada por vários médicos”, descreve.
“Eles, de fato, precisam ficar quietinhos (em casa), isolados, em lugar de
baixo contato, sem aglomeração”, reforça.
 O médico, que é coordenador de saúde do Centro
de Treinamento Paralímpico, em São Paulo, também chama atenção aos que
dependem de cadeira de rodas – não apenas os lesados medulares – para se
locomoverem e aos deficientes visuais. 
 “Esse pessoal tem risco porque precisa o
tempo inteiro encostando em equipamentos e pessoas com a mão ou outras
estruturas. Precisam limpá-las com frequência maior”, detalha.

 Jogos adiados

 De acordo com Hesojy Gley, pesquisas do
Comitê Paralímpico Internacional (IPC, sigla em inglês) e de outras entidades
indicam que atletas do paradesporto sofrem o dobro de intercorrências clínicas
ou “doenças” – lesões sem características músculo esqueléticas –
na comparação com esportistas sem deficiência. “Dessas (intercorrências),
35% são respiratórias”, alerta. 
 Em meio ao estágio pandêmico da doença
respiratória e os impactos na saúde pública e no planejamento esportivo, com o
cancelamento de diversas competições e a dificuldade de treinamento dos
atletas, o adiamento dos Jogos de Tóquio é visto com bons olhos.
 “Quando se analisa o aspecto ético e
moral, o fair play (jogo
limpo), os Jogos já estavam comprometidos porque cada região tem uma evolução
diferente. No paralímpico, a gente não teve possibilidades de classificação
funcional (processo que verifica a elegibilidade do atleta no movimento e qual
a categoria). E se pensarmos naquele grupo de 10% a 20% de atletas em faixa de
risco numa delegação, imagina eles vindo de todos os lugares do mundo e ao
mesmo tempo, em meio à pandemia?”, interroga o médico do CPB, durante
entrevista à Agência Brasil pouco
antes do adiamento para 2021 ser confirmado.
 “A gente entende que é muito dinheiro
investido, foram anos de envolvimento para que os eventos fossem preparados,
mas, penso que o foco, agora, seja o problema social e de saúde que está
atingindo o mundo. Há muitos atletas sem um terço das condições que
temos. Eu tenho procurado me alimentar de livros, fazer o que posso para manter
a mente ativa e com perspectiva de esperança”, conta Evelyn Oliveira.
 Para Verônica Hipólito, novas questões vêm à
tona com a mudança. “Como serão os qualificatórios? Como serão as
classificações (funcionais)? O que acontecerá com as competições canceladas
nesse primeiro semestre? São muitas perguntas, mas a primeira delas foi
respondida. Não tinha como procederem como os Jogos. Os atletas não tinham como
continuar a preparação colocando em risco a saúde, nossa e pública, e a
qualidade do evento. Foi a melhor decisão”, conclui a atleta, que opinou
sobre a mudança da Paralimpíada para 2021 em vídeo enviado à Agência Brasil.
Foto:  Sergio
Moraes